Equidade e a Agenda Antidiscriminação nos Planos de Educação do Nordeste Brasileiro

Gabriel Fortes
Alcimar Trancoso
Adélia Souto de Oliveira
Paula Orchiucci Miura
Iara Beatriz Alves da Silva
Angelina Nunes Vasconcelos

Apresentação do Contexto e Problema Pesquisado

A educação é uma ferramenta poderosa para promover a equidade e combater as desigualdades sociais. No Brasil, os Planos Municipais e Estaduais de Educação são instrumentos fundamentais para a implementação de políticas educacionais que refletem os princípios de justiça social. Esses planos são projetados para ser o alicerce de práticas educacionais que garantem o direito à educação de qualidade para todos, independentemente de raça, gênero, orientação sexual ou deficiência. Entretanto, apesar dos esforços institucionais, há uma lacuna significativa na incorporação de uma agenda antidiscriminação sólida nesses documentos, especialmente nas regiões mais vulneráveis, como o Nordeste.

Nosso estudo documental analisou os planos de educação dos estados e capitais do Nordeste brasileiro, focando na presença e na qualidade da linguagem antidiscriminatória. A pesquisa revelou a importância de uma abordagem interseccional e crítica, que vá além de meras menções a identidades isoladas, mas que aborde as estruturas de opressão de forma ampla e integrada. O ponto principal do nosso argumento é que ainda há bastante espaço para melhora no que diz respeito à construção de uma agenda equitativa e antidiscriminatória. 

As Palavras Importam

A linguagem utilizada nos planos de educação tem um papel importante na construção de um compromisso social com a equidade, tanto no mundo político como no impacto que pode gerar na vida social. A inclusão de termos antidiscriminatórios é mais do que uma formalidade; é uma declaração de intenção política e social com princípios caros que sinalizam a qual futuro democrático queremos estar comprometidos coletivamente. No entanto, para que esses termos tenham um impacto real, é necessário que sejam utilizados de forma a refletir um entendimento interseccional das injustiças.

Uma abordagem interseccional reconhece que as opressões não afetam as pessoas de maneira isolada. Por exemplo, uma mulher negra pode enfrentar discriminação de gênero e de raça simultaneamente, e essas formas de opressão não são simplesmente somadas, mas sim entrelaçadas. Portanto, ao elaborar políticas educacionais, o foco deve estar nas matrizes de opressão que estruturam a sociedade, e não apenas em proteger grupos vulneráveis de forma desarticulada. Como argumentado por Crenshaw (1989), é essencial entender como as categorias de identidade se interseccionam em contextos específicos de opressão para efetivamente combater as desigualdades. 

Da mesma forma, Collins (1990) destaca a necessidade de focar na matriz de dominação que sustenta as várias formas de opressão, ao invés de tratar os grupos oprimidos de forma isolada. Ou seja, o compromisso precisa estar, por um lado, no reconhecimento do Estado de seu papel como reprodutor de sistemas de opressão, como também, em entender seu lugar na luta contra a opressão que ele próprio é capaz de fomentar. Acreditamos que analisar os planos pode nos oferecer uma visão ampla justamente desses processos.

A Baixa da Antidiscriminação nos Planos

A análise dos planos de educação dos estados e capitais do Nordeste revela uma preocupante carência de vocabulário antidiscriminatório, destacando a superficialidade com que a questão da equidade é tratada nesses documentos. Embora o termo “racismo/racista” seja o mais frequentemente citado, aparecendo em 14 documentos, sua presença não se traduz necessariamente em um compromisso sólido e ativo com a erradicação das desigualdades raciais. A frequência com que o termo é mencionado pode sugerir uma consciência inicial sobre a importância do combate ao racismo, mas a ausência de desdobramentos em metas ou estratégias concretas enfraquece esse reconhecimento.

O termo “homofobia/homofóbico”, por sua vez, surge em sete documentos, o que é significativo, mas ainda insuficiente, especialmente em um contexto em que a violência e a discriminação contra a comunidade LGBTQIA+ são alarmantes no Brasil. No entanto, a presença de termos como “antirracismo” e “capacitismo” é raríssima, indicando uma falha ainda maior em abordar de forma integral as diferentes dimensões das opressões que permeiam a sociedade. Essa falta de atenção a aspectos como o capacitismo, por exemplo, sugere uma visão limitada sobre as necessidades específicas de grupos historicamente marginalizados, como as pessoas com deficiência.

Essa escassez de vocabulário antidiscriminatório é sintomática de uma abordagem fragmentada e reativa, em vez de proativa e transformadora. A menção de termos como “racismo” ou “homofobia” sem que sejam acompanhados de ações claras e estratégias específicas reflete uma falta de comprometimento com a transformação estrutural necessária para combater as desigualdades no sistema educacional. Como Collins (1990) aponta, sem um foco na matriz de dominação, qualquer esforço para combater opressões acaba sendo superficial e ineficaz. A escassez de uma visão antidiscriminatória somada ao contexto de que muitos dos planos chamam atenção para promoção de equidade através de uma agenda específica sobre diminuição de brechas entre grupos sociais mostra que o foco ainda está em olhar para o problema como se o grupo vulnerável pudesse sair de sua condição marginalizada sem ação sobre os processos que o oprimem e designam a seu lugar de desvantagem social.

Além disso, a ausência de uma linguagem mais robusta e abrangente indica que a compreensão dos desafios da equidade ainda é superficial em muitos desses planos. Quando termos como “antirracismo” aparecem de forma tão rara e desconectada de metas práticas, evidencia-se que há uma resistência ou, no mínimo, uma falta de entendimento sobre a necessidade de abordar as desigualdades de maneira interseccional e sistêmica, conforme argumentado por Crenshaw (2002) em sua análise sobre as múltiplas camadas de discriminação que afetam as mulheres negras.

Assim, a análise desses planos revela que, apesar de alguns avanços no reconhecimento de certos tipos de discriminação, há uma lacuna significativa na incorporação de uma linguagem e uma agenda antidiscriminação que seja realmente comprometida com a transformação estrutural. A inclusão superficial de termos sem ações concretas não é suficiente para gerar mudanças significativas. Para que a educação se torne um verdadeiro instrumento de equidade, é necessário um compromisso mais profundo e abrangente, que vá além da mera menção de termos e se traduza em políticas educacionais efetivas e transformadoras.

Esses resultados deixam claro que ainda há muito a ser feito para que a educação no Nordeste brasileiro possa realmente promover a equidade de forma plena e integrada. Os planos de educação, como ferramentas estratégicas, precisam evoluir para refletir uma compreensão mais profunda das opressões estruturais e para propor soluções que realmente façam a diferença na vida das pessoas.

O Caminho para uma Educação Transformadora

Para que os planos de educação do Nordeste brasileiro possam realmente promover a equidade, é essencial que incluam uma linguagem antidiscriminatória clara e comprometida. Isso não só reforça o compromisso social com a justiça, mas também serve como base para o desenvolvimento de políticas educacionais que abordem as desigualdades de maneira integrada e eficaz. Conforme enfatizado por Crenshaw (2017), a interseccionalidade deve ser o pilar dessas políticas, garantindo que não apenas grupos específicos sejam protegidos, mas que as estruturas de poder opressoras sejam desmanteladas.

A introdução de uma agenda antidiscriminatória nesses planos pode levar a políticas específicas que melhorem a equidade, indo além da simples proteção de grupos vulneráveis. É necessário um reconhecimento das estruturas opressoras dentro do sistema educacional e a criação de estratégias que visem sua transformação. Somente assim será possível construir um sistema educacional que não apenas acolha a diversidade, mas que também atue ativamente para desmantelar as desigualdades que afetam diversos grupos sociais.

Ao incluir a antidiscriminação como uma agenda principal nos planos de educação, estamos dando um passo fundamental para garantir que o direito à educação de qualidade seja universal, equitativo e verdadeiramente inclusivo.

Referências

COLLINS, Patricia Hill. Black feminist thought in the matrix of domination. In: _____. Black feminist thought: Knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. New York: Routledge, 1990. p. 221-238.

CRENSHAW, Kimberlé. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. University of Chicago Legal Forum, Chicago, v. 1989, n. 1, p. 139-167, 1989.

CRENSHAW, Kimberlé W. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002.

CRENSHAW, Kimberlé W. On intersectionality: Essential writings. New York: The New Press, 2017.

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